quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Notas sobre a Praxe



O estado demite-se. As várias instituições sociais demitem-se. E, por fim e pelo pior, as organizações como as universidades e as associações de estudantes demitem-se também do processo integração e consciencialização.

Assim, sobram aqueles jovens de roupa negra e a instituição "praxe" para tomar conta do assunto - pois "quem não tem cão, caça com gato". Isto só é possível num país como Portugal, onde todos se demitem e deixam dados grupos assumirem papeis de poder com maior ou menor estatuto de decisão e controlo social. Por exemplo, o governo português e as comissões de trote.

Isto acontece num país onde ir para a universidade é ir para a galhofa e sacar um diploma. Cada um sabe de si, mas o que deve ser preocupante é o facto de isto acontecer em vez de se ir para a universidade cultivar conhecimento e evoluir enquanto ser humano, e claro, enquanto cidadão. Enfim, o problema é que nem estudar e ler bibliografias, quanto mais cidadania e humanismo...

Isto acontece num país onde não se valoriza o real sentido da dita vida académica. Ou seja, estudar, investigar, desenvolver conhecimento, apalpar esse conhecimento e conviver. Conviver, claro, mas dentro de um ambiente  académico e estudantil saudável e construtivo (estudantil remete para estudos e estudantes, não para cânticos machistas e homofóbicos).

Isto acontece num país pateta e alienado onde se permite que estes indivíduos (alguns de tom duvidoso) assumam um papel de poder, controlo e manipulação da realidade social no seio de instituições de maior importância como as universidades. As universidades são um pilar das sociedades contemporâneas, não podem ser uma feira medieval (lá está, é a "tradição"). Imaginem esta galhofa num hospital... Ou quiçá nas nossas próprias casas, ali em cima da carpete da sala de estar.

A praxe não é tradição, a tradição é algo que é constantemente produzida e reproduzida no presente e só existe se um dado grupo assim o quiser - e outros o tolerarem.

A tradição não se justifica com a própria tradição mas sim através dos interesses e valores que os seus praticantes formulam e reivindicam para si. Isto da tradição é falso e intelectualmente desonesto. Pior é ver supostos estudantes de ciências sociais a dar este argumento. Demonstra que não andam ali a fazer nada, ou fazem muito pouco.

A universidade é pluralismo, não é uniformidade e fascismo infantil. A universidade é de todos e deve ser respeitada enquanto local de pedagogia e conhecimento. Tais rituais tendem a estigmatizar e a perturbar o espaço socialmente partilhado, e assim envergonham a universidade e os estudantes.

A noção morreu em Portugal. Tragam a tradição, o ultra-tradicionalismo, o elitismo e a submissão cega e corporativista. Tragam o Salazar de Santa Comba Dão e metam novamente o bandido do José Hermano Saraiva a espancar os estudantes. Para muitos esses tempos seriam espectaculares - era só tradição e hierarquia instituída pela força.

Esse sim, era o Portugal das praxes, das elites e da submissão... O Portugal que deveríamos compreender e analisar com um perspectiva crítica, e não esquece-lo como até agora se tem feito. Esquecer é isto, é a realidade social assente em condições materiais da vida social que estão fragmentadas e corrompidas  por maus vícios do passado. Este é um problema cultural, tal como tantos outros que temos cultivado.

Enquanto não houver consciência, enquanto se perpetuar a ausência de pensamento crítico sério e intelectualmente honesto, creio que vamos continuar a assistir a velhos fenómenos. Vamos assim continuar a assistir à cristalização e reprodução de supostas tradições e instituições que apenas  fazem de Portugal um país tradicionalista, resistente à mudança, desmotivado e incapaz de se auto-superar. A sociedade portuguesa tem estigmas e complexos (de inferioridade e de superioridade) em estado agudo. E isto tudo que nos desagrada (ou agrada) é um produto social disso mesmo.

Por fim, este é um fenómeno cultural relevante e deve ser analisado - jamais ignorado. É necessário para bem de todos, que se compreenda o fenómeno do ponto de vista institucional, à luz das práticas sociais e dos actores que as produzem e reproduzem. O quê? Como? Onde? Porquê? Que classe? Para onde vão? De onde chegam? Talvez aqui existam respostas para a construção de um clima de co-existência intelectualmente honesto. Esta questão da análise do debate é muito importante, é pena que quando se tenta debater o assunto, haja sempre um lado da moeda que foge ao debate e mete a capa da tradição.

 Esta lado da fuga e disfarce é triste, pois há defensores da causa da "praxe" que conseguem realizar exercícios intelectuais honestos e críticos, e esses devem mover-se e evitar que os colegas continuem a dar respostas vazias que envergonham os estudantes aos olhos dos outros cidadãos.

Aos defensores do trote: as coisas estão como estão, por favor, defendam-se bem. O outro lado da barricada fez o trabalho de casa e vocês necessitam de fazer sentido.

Pois bem, mas como isto é Portugal, está e vai estar tudo na mesma. Não se preocupem.